Correndo risco de ser privatizada pela atual gestão municipal de Porto Alegre, a situação da Usina do Gasômetro, espaço público desde 1959, tem mobilizado movimentos e entidades culturais, assim como parlamentares.
Nesta terça-feira (2), uma comitiva formada por representantes de entidades ligadas à cultura e também parlamentares entregaram um ofício ao superintendente de Patrimônio da União no Rio Grande do Sul, Emerson Rodrigues. No documento os manifestantes destacam a preocupação com a manutenção da gestão pública do prédio da União cedido ao Município de Porto Alegre.
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Inaugurada em 11 de novembro de 1928 como uma fonte termelétrica de energia para Porto Alegre, a Usina do Gasômetro, com a estatização da CEEE em 1959, passou a ser um espaço público, pertencente à União. Com o passar do tempo, ela se tornou um espaço cultural, que em 1982, através de um acordo firmado entre prefeitura e União foi cedido à cidade de Porto Alegre.
Fechado desde 2017, por conta das reformas na Orla do Guaíba, o espaço agora está sob um projeto de privatização encabeçado pelo Executivo municipal. No dia 21 de março, uma audiência pública na Câmara de Vereadores de Porto Alegre debateu a proposta do governo do prefeito Sebastião Melo (MDB).
De acordo com a proposta da prefeitura, o local abrigará um novo complexo cultural por meio de parceria com a iniciativa privada. A proposta prevê que, por 20 anos, uma empresa privada faça a operação do Gasômetro, com gestão compartilhada com o poder público. O governo municipal afirma que o viés cultural da usina será mantido, com o espaço aberto ao público e acesso gratuito a diversas áreas.
Para os signatários do documento entregue ao superintende, o efeito deste processo de privatização dos espaços é a cada vez maior dificuldade de ter acesso a um local para ensaiar e se apresentar ou expor suas obras, levando ao fim precoce de muitos grupos culturais e carreiras artísticas locais, inclusive de alguns grupos longevos.
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Entre as solicitações encaminhadas, os abaixo-assinados pedem que o prédio público federal não seja doado ao Município de Porto Alegre, permitindo sua concessão à iniciativa privada, podendo ser sua cessão continuada desde que observado o convênio firmado em vigor. Que não seja permitida a concessão à iniciativa privada do prédio e da chaminé da Usina do Gasômetro, bem como do seu anfiteatro externo, bens tombados a serem preservados pelo Município; entre outros.
De acordo com os signatários, além de receber o documento, o superintendente deixou claro que neste momento a Usina do Gasômetro não pode ser concedida à iniciativa privada e que a doação não será analisada a curto prazo por depender de uma série de estudos técnicos e de valor do imóvel que devem ser realizados anteriormente a qualquer decisão da União.
Abaixo o documento completo
Senhor Superintendente:
Vimos através deste manifestar nossa preocupação com a manutenção da gestão pública de próprio da União cedido ao Município de Porto Alegre conhecido como Usina do Gasômetro, conforme segue.
Dos antecedentes da Usina do Gasômetro
A Usina do Gasômetro foi inaugurada em 11 de novembro de 1928 como uma fonte termelétrica de energia para Porto Alegre através do monopólio privado da multinacional estadunidense Eletric, Bond & Share Co., à época subsidiária da CEEE. Embora movida a carvão, o termo “Gasômetro” fazia referência aos tanques de petróleo que eram distribuídos por canalização às residências que ficavam em seu entorno. Mais precisamente, no centro histórico de Porto Alegre, na chamada Praia do Arsenal. Sua chaminé de 117 metros de altura, foi construída posteriormente, em 1937, devido aos problemas de fuligem emitidos pela Usina.
Com a estatização da CEEE em 1959 pelo governador Leonel Brizola, ela passou a ser pública. Após, foi repassada a outra empresa pública, a Eletrobrás, criada em 1962 pelo governo João Goulart. Foi desativada em 1974 em meio à crise mundial do petróleo.
Somente em 1982, o terreno e o imponente prédio foram cedidos a Porto Alegre por tempo indeterminado através de convênio. Uma das cláusulas do instrumento determinou que se mantivesse o prédio e o conjunto do terreno que o abriga sob gestão pública. Ou seja: administrado pelo Município de Porto Alegre. Vedava expressamente o acordo, a cessão da Usina do Gasômetro e de seu terreno à gestão privada. Nesse período, tanto o prédio quanto sua chaminé foram tombados e se transformaram em patrimônio histórico cultural.
Em 1988, com o intuito de transformar o local em centro de formação profissional, o prefeito do período iniciou algumas reformas no local. Fazia parte do projeto Praia do Guaíba, que incluía também a construção de imponentes prédios de alto padrão na sua orla e que foi rechaçado pela população. Num ato histórico, milhares de pessoas realizaram um abraço ao prédio da Usina e sua orla, chegando a ver o desfraldamento de uma grande faixa do alto da chaminé em defesa da permanência do espaço público.
Após muitos estudos, a verdadeira vocação do prédio foi encontrada. Em 1991, foi inaugurado o Centro Cultural Usina do Gasômetro, que passou a unir o conjunto da cidade com sua orla a partir da cultura e das artes. A primeira grande atividade no interior do prédio foi a Feira Latinoamericana de Artesanato e o primeiro Congresso Nacional de artesãos e artesãs do Brasil. A Feira permaneceu sendo realizada no local até 2014.
Em 1992, o Centro Cultural recebeu os debates da Eco92, primeira conferência mundial sobre meio ambiente e desenvolvimento sustentável da ONU, mais tarde foi ponto central das primeiras edições do Fórum Social Mundial e até de eventos mais específicos, como as reuniões anuais de fãs de Star Wars. Todas as atividades de livre acesso à população sem que esta precisasse desembolsar um centavo sequer para participar.
A efervescência cultural da Usina incluía shows, teatro, circo, literatura, artes visuais e cinema. Seja em sua parte interna, quanto na externa. Em seu prédio, há a Sala de Cinema P. F. Gastal, inaugurada em 1999 e projetada para exibir e fomentar o audiovisual local e filmes que não fazem parte do circuito comercial, a qual possuía a capacidade de 118 espectadores. Em 2004, o Centro Cultural passou a contar com o Teatro Elis Regina, projetado para, no formato de Arena, abrigar peças locais. Também havia espaços privilegiados para oficinas gratuitas das artes, ensaios, exposições de artes plásticas, memória e fotografias. Todas, de acesso gratuito ao conjunto da população.
Em seu espaço externo, no entorno da chaminé, o Centro Cultural Usina do Gasômetro passou a contar com um anfiteatro, onde atividades culturais nas áreas da música, dança, circo e teatro eram realizadas. Além de uma alameda que abrigava o Brique de Domingo da Usina do Gasômetro, instituído por Lei Municipal. Isso era possível por esses locais serem parte do terreno da Usina cedido ao Município.
Com o projeto de transformação da Orla, a Usina do Gasômetro fechou para reformas em 2017. Deve-se observar que, após a transformação, suposta área pertencente ao terreno cedido pela União foi concedida à administração privada. Em especial, a Alameda antes destinada ao Brique de Domingo do Gasômetro e o anfiteatro existente na parte externa do prédio, o qual, inclusive, está transformado em estacionamento privado. Especificamente sobre a reforma da parte interna, estima-se que o valor final de investimentos ao final chegue a R$ 20,6 milhões. Parcela do mesmo advinda de financiamento internacional e outra parcela dos cofres municipais.
Mesmo tendo conhecimento do convênio firmado entre a União e a Prefeitura em 1982, a atual gestão municipal abriu processo de consulta pública buscando o estabelecimento da concessão do Centro Cultural Usina do Gasômetro à iniciativa privada através de Parceria Público-Privada. Também, sabemos, tem buscado a doação do próprio da União ao Município.
Dos Pedidos à Superintendência de Patrimônio da União
- Considerando os limites do terreno estabelecidos através de escritura pública passada no Livro 1807, à fls. 120 do 20º Ofício de Notas da Cidade do Rio de Janeiro, em 28 de dezembro de 1977;
- Considerando que o referido terreno é de propriedade da União, mesmo que cedido à Prefeitura Municipal de Porto Alegre através de convênio;
- Considerando a CLÁUSULA TERCEIRA do convênio firmado entre a União e a Prefeitura Municipal de Porto Alegre em 05 de janeiro de 1982, o qual ainda está em vigor e que assim determina: “(...) A Presente cessão fica condicionada à preservação das partes tombadas e à utilização do respectivo terreno somente como logradouro público”;
- Considerando a importância do Centro Cultural Usina do Gasômetro, patrimônio histórico e cultural tombado, para o conjunto da população e para a comunidade artística e cultural;
- Considerando a possibilidade de sua descaracterização enquanto espaço público da cultura e das artes estabelecida em parcela do edital para sua concessão privada, tais como a realização de eventos privados mediante pagamento de aluguel ao detentor da concessão e cobrança de ingressos da população;
- Considerando o processo semelhante ao de gentrificação dos espaços públicos em relação à comunidade cultural local que os ocupava, a qual se vê expulsa dos espaços onde antes apresentavam sua arte. Ilustra esta constatação o caso de Abraham, artista de rua muito tradicional do município que foi expulso da região Orla próxima ao Gasômetro pelo pessoal da concessionária Gam3 há um ano);
- Considerando que o efeito deste processo de privatização dos espaços é a cada vez maior dificuldade de ter acesso a um local para ensaiar e se apresentar ou expor suas obras , levando ao fim precoce de muitos grupos culturais e carreiras artísticas locais, inclusive de alguns grupos longevos.
Os abaixo-assinados que este subscrevem, nos termos da Lei, solicitam à Superintendência de Patrimônio da União:
1. Que o próprio público federal não seja doado ao Município de Porto Alegre permitindo sua concessão à iniciativa privada, podendo ser sua cessão continuada desde que observado o convênio firmado em vigor;
2. Que seja realizada, pela União, a fiscalização adequada sobre suposta existência de parcela do próprio federal em questão concedida irregularmente à iniciativa privada pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre à revelia do convênio firmado. Em havendo irregularidades, que estas sejam imediatamente sanadas;
3. Que não seja permitida a concessão à iniciativa privada do prédio e da chaminé da Usina do Gasômetro, bem como do seu anfiteatro externo, bens tombados a serem preservados pelo Município;
4. Que esta Superintendência realize, em conjunto com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN - e o Ministério da Cultura, vistoria técnica no intuito de verificar a preservação das partes tombadas da Usina do Gasômetro;
5. Que esta Superintendência, em conjunto com o Ministério da Cultura, promovam o diálogo sobre o Centro Cultural Usina do Gasômetro com a comunidade cultural e artística, bem como a Prefeitura Municipal de Porto Alegre, verificando a forma mais adequada da sua manutenção enquanto espaço público de fomento da cultura em Porto Alegre.
São estes os pedidos e rogamos por seu atendimento por parte desta Superintendência de Patrimônio da União.
Atenciosamente,
Aldacir Oliboni - Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Cultura da Câmara Municipal de Porto Alegre
Leonel Radde - Presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Cultura da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul
Letícia Fagundes - Vice-presidente Conselho Municipal de Cultura de Porto Alegre
Luciano Fernandes - Presidente do Sated/RS
Consuelo Vallandro - Associação de Circo do RS
Polaca Rocha - Coordenadora da Associação dos Músicos de Porto Alegre
Sérgio Freitas - Presidente da Cooperativa dos Artesãos do RS
Tânia Farias - Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
Hamilton Leite - Rede Brasileira de Teatro de Rua
Vinícius Galeazzi - Comitê Esperançar
Edição: Katia Marko