Rio Grande do Sul

ECONOMIA SOLIDÁRIA

Movimentos da economia solidária lamentam transferência da Irmã Lourdes para o Maranhão

Há 35 anos atuando em prol da economia solidária em Santa Maria, o trabalho da Irmã Lourdes é reconhecido no país

Brasil de Fato | Santa Maria |
A despedida da irmã Lourdes está marcada para o dia 2 de abril de 2022, quando serão comemorados os 30 anos do Feirão Colonial e 34 anos do Projeto Esperança/Cooesperança - Foto: Maiquel Rosauro

A notícia da transferência da Irmã Lourdes Dill para o Maranhão, divulgada nesta terça-feira (21), causou comoção e indignação. Logo após o anúncio, foi formado um grupo com movimentos populares e instituições de todo o país que lançou nas redes sociais a hashtag #DeixemIrmãLourdesFicar.

Há 35 anos atuando em prol da economia solidária em Santa Maria, o trabalho da Irmã Lourdes transformou a cidade na capital da Economia Solidária da América Latina. Entre as diversas atividades que organiza dentro do Projeto Esperança/Cooesperança, está a Feicoop, que além de movimentar a economia da cidade, gera renda aos pequenos produtores.

Em reunião no Arcebispado, na manhã de terça-feira (21), o arcebispo de Santa Maria, Dom Leomar Brustolin, garantiu que tanto o Feirão Colonial quanto a Feira Internacional do Cooperativismo (Feicoop) terão continuidade e o apoio da Igreja Católica. O encontro reuniu lideranças e voluntários do Projeto Esperança/Cooesperança.

"É uma transição após 35 anos de um trabalho incansável, mas é necessário dar continuidade ao Projeto. Toda mudança causa certa instabilidade e até dificuldade, mas os compromissos com a causa serão mantidos", afirma Dom Leomar.

A despedida da Irmã Lourdes está marcada para o dia 2 de abril de 2022, quando serão comemorados os 30 anos do Feirão Colonial e 34 anos do Projeto Esperança/Cooesperança. A religiosa, a pedido da Congregação Filhas do Amor Divino, assumirá uma nova missão. Sua transferência será para a Diocese de Grajaú, no Maranhão. Ela atuará na cidade de Barra do Corda, onde seguirá trabalhando com pobres, Economia Solidária e povos indígenas.


A função da Irmã Lourdes passará a ser exercida por José Carlos Peranconi, um dos líderes dos grupos de Economia Solidária no município / Foto: Maiquel Rosauro

A sua função passará a ser exercida por José Carlos Peranconi, um dos líderes dos grupos de Economia Solidária no município. Zeca, como é chamado por todos a sua volta, participa dos grupos de Economia Solidária desde 1989, apenas dois anos após a criação do Projeto Esperança. No Feirão Colonial ele possui uma banca onde comercializa malhas. Além disso, é um dos coordenadores da Feicoop, atuando na organização dos mutirões que atuam no evento.

"Substituir alguém nunca é fácil. Mas pelo tempo que estamos, temos formas de conseguir dar continuidade. Hoje, existe uma administração no escritório e outra na prática, agora vamos fazer tudo junto em um só lugar, no Centro de Referência. Não tenho medo, sabemos como tudo funciona", avalia Zeca.

Legalmente, Zeca assumirá o posto de presidente da Cooperativa Cooesperança. Na prática, junto aos grupos de Economia Solidária, sua função será a de coordenador do Projeto Esperança/Cooesperança, a mesma hoje desenvolvida pela irmã Lourdes.


Em reunião no Arcebispado, na manhã desta terça, o arcebispo de Santa Maria, Dom Leomar Brustolin, garantiu a continuidade do Feirão Colonial e da Feira Internacional do Cooperativismo (Feicoop) / Foto: Maiquel Rosauro

"Agradeço a todos e levo a Deus um grande hino de ação de graças", diz Irmã Lourdes

Nos próximos três meses, Irmã Lourdes Dill pretende promover uma série de reuniões com lideranças da Economia Solidária e de parceiras do Projeto Esperança/Cooesperança a fim de promover uma transição madura e consciente. A sensação é de dever cumprido.

"Há um tempo para cada coisa. Meus 35 anos de Santa Maria foram tempos férteis, projetivos e muito importantes para a cidade, para o Brasil e para a América Latina no contexto da Feicoop. Fui alguém que puxei a frente de um coletivo de um grande grupo chamado Projeto Esperança/Cooesperança - Rede Esperança, que torna Santa Maria a capital mundial da Economia Solidária", reflete a irmã.

A religiosa destaca ser grata a Deus, Nossa Senhora Medianeira por todas as graças alcançadas, Congregação Filhas do Amor Divino e aos bispos Dom Ivo Lorscheiter, Dom Hélio Adelar Rubert e Dom Leomar Brustolin, e a todas as entidades e organizações que ajudaram a construir o Projeto, o Feirão Colonial e a Feicoop, em especial a Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Instituto Federal Farroupilha (IFFAR), Prefeitura de Santa Maria, Cáritas Brasileiras, Cáritas Rio Grande do Sul, voluntários, veículos de comunicação e Arquidiocese.

"Fiquei muito tranquila quando Dom Leomar afirmou que não terão mudanças no Feirão Colonial, Feicoop e nas feiras no Centro de Santa Maria. Pelo contrário, serão potencializadas. Tenho certeza de que a semente plantada continua fortificando em Santa Maria, no Brasil e no mundo. Afirmo de coração que a Economia Solidária é uma outra economia que acontece. E que outro mundo é possível desde que cada um faça sua parte. Agradeço a todos e levo a Deus um grande hino de ação de graças", disse irmã Lourdes.

 

Irmã Lourdes é economista com especialização em Movimentos Sociais, Organização Popular e Democracia Participativa, na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Há 35 anos vem trabalhando em Santa Maria na atuação direta e ininterrupta no Projeto Esperança/Cooesperança, (setor vinculado ao Banco da Esperança da Arquidiocese de Santa Maria), onde atua como coordenadora. Contribuiu na organização de centenas de grupos de Economia Solidária e Agricultura Familiar da região, do Grupo GATS (Grupo Agroecológico Terra Sul), do Levante Popular da Juventude, da ADESM (Agência de Desenvolvimento de Santa Maria) a “Santa Maria que Queremos” do Eixo de Economia Solidária e do Planejamento Estratégico de 2014/ 2030, entre muitas outras atividades em nível local, regional e nacional.

Manifestações contra a transferência

Desde ontem (22), muitas pessoas, entidades e movimentos têm se manifestado contra a transferência da Irmã Lourdes. Entre elas estão o CAMP - Escola de Cidadania, Projeto Fomento à Economia Solidária da UFSM, Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul (Consea-RS), União das Associações Comunitárias, Levante Popular da Juventude, dirigentes do PSOL Santa Maria, Coletivo Juntos de Santa Maria, MST, Via Campesina, Rede Ubuntu de Cooperação Solidária, Incubadora Social da UFSM, Observatório de Direitos Humanos da UFSM, EcoViamão - Núcleo de Estudos em Agroecologia e Produção Orgânica de Viamão, Marcha Mundial das Mulheres, Empreendimento de Economia Solidaria Misturando Arte, Projeto AgriNet - Instituto Federal Farroupilha campus Júlio de Castilhos, discentes da UFSM - Projetos de extensão, Ponto de Cultura Royale Escola de Dança e Integração Social, Juventude Franciscana.


Diversas pessoas, entidades e movimentos se manifestaram pela permanência da Irmã Lourdes / Divulgação

Em um texto divulgado em suas redes sociais, Athos Ronaldo Miralha da Cunha, frequentador do feirão colonial nos sábados pela manhã, destaca que sempre vê a irmã envolvida com afinco na gestão da feira. “A Feira Internacional do Cooperativismo coloca Santa Maria para o mundo da economia solidária e deixa vivo o passado cooperativista da cidade. Lembremos que Santa Maria foi berço da Cooperativa dos Ferroviários”, relembra.

Segundo ele, reconhecidamente, Irmã Lourdes é a pessoa que mais trabalha pela economia solidária e cooperativista. “Ela congrega e expande o ideal do associativismo. Não conseguimos falar sobre cristianismo em Santa Maria sem lembrarmos da Irmã Lourdes. A Irmã Lourdes representa o que existe de mais puro e utópico para os dias tão nebulosos que temos vivido. Representa o sonho dos humildes. São mais de 35 anos dedicados ao projeto Cooesperança. O vínculo da irmã com Santa Maria transcende ao trabalho social. A irmã faz parte do cotidiano da cidade, da sua gente e dos trabalhadores. A Irmã Lourdes representa o sonho de uma vida melhor.”

Outra manifestação, de uma pessoa que não quis se identificar, salienta que a Irmã Lurdes demonstra a grandiosidade de mulheres como Santa Dulce, como Santa Teresa De Ávila, como Madre Teresa, que passaram por momentos de provação. “Agora sabemos que a igreja não é só a decisão do clero, da hierarquia, só a decisão eclesiástica, a igreja é eclesial, é povo de Deus a caminho, e esse povo de Deus a caminho aprendeu e aprende muito com a Irmã Lourdes, e irá acompanhá-la por onde ela for, esse povo está com ela.”

Nosso entrevistado também questiona por que a transferência para tão longe. “Por exemplo, se ela ficasse em Cerro Largo, nós ainda teríamos a referência de assessora da nossa caminhada do RS, ela participaria da Feicoop, participaria da Romaria da Terra.” E salientou a importância de recontar a vocação da Irmã Lourdes, os motivos que a levaram para Santa Maria, junto com Dom Ivo Lorscheiter. “Precisamos lembrar o que foram as CEBs perpassando por Santa Maria, qual a incidência da Irmã Lourdes na CPT, nos conflitos do campo, na questão agrária, com os povos indígenas. Ou seja, ela encarna a ecologia integral que o Papa Francisco nos propõe.”

Projeto Esperança/Cooesperança

Segundo a Arquidiocese, a continuidade do Esperança/Cooesperança está garantida, mas estão previstas alterações administrativas. A sede do Projeto será transferida da Rua Silva Jardim, no Centro de Santa Maria, para o Centro de Referência de Economia Solidária Dom Ivo Lorscheiter, nos fundos do Parque da Medianeira, onde ocorre o Feirão Colonial nas manhãs de sábado e, anualmente, sedia a Feicoop.

“Para garantir a continuidade de todas as ações, a Arquidiocese de Santa Maria firmará um comodato com a Cooperativa Cooesperança para uso gratuito do espaço. O acordo assegurará o uso do espaço pelos produtores, na condição de que sejam mantidas as raízes do Projeto semeado por Dom Ivo Lorscheiter: fortalecer o cooperativismo, a Economia Solidária, a agricultura familiar, as formas de organização do comércio justo, ético e solidário, bem como o fomento de políticas públicas e as parcerias de trabalho com os catadores, povos indígenas, quilombolas e consumidores”, divulgaram.

O Banco da Esperança, que desenvolve atividades assistenciais e foi impactado pela pandemia, será desvinculado do Projeto. Já a Feira da Primavera, que ocorre anualmente em setembro, será melhor avaliada sobre sua realização. Na prática, o Projeto seguirá atuando como braço da Arquidiocese, sendo referência no desenvolvimento de ações sociais e parceiro de primeira hora em eventos da Igreja Católica.

Claudia Machado assumirá presidência municipal do Consea

A saída da Irmã Lourdes de Santa Maria também impactará no Conselho de Segurança Alimentar (Consea/SM), presidido pela religiosa. Em reunião na segunda-feira (20), o órgão decidiu que Claudia Machado, também integrante do Projeto Esperança/Cooesperança, assumirá o posto em abril.

"O Consea deu um salto enorme com a Irmã Lourdes e é um desafio grande, que exige bastante demandas. Mas por ser membro há algum tempo, já estou inserida no Consea e apropriada à temática da segurança alimentar. Vou dar continuidade ao trabalho da irmã e investir na parte formativa", projeta Claudia.

O Consea tem por objetivo articular e mobilizar a sociedade, formular políticas, programas e ações que configurem o direito humano à alimentação nutricional sustentável. É composto por oito representantes de governo municipal, um do governo do estado, um da UFSM, um do Banco do Brasil, 11 usuários e 11 membros da sociedade civil.

Manifesto do Fórum Gaúcho de Economia Popular e Solidária

Em reunião extraordinária, na tarde desta quinta-feira (23), o Fórum Gaúcho de Economia Popular Solidária do Rio Grande do Sul, do qual o Projeto Esperança/Cooesperança faz parte, refletiu sobre a situação e deliberou por divulgar uma manifestação pública.

Além de resgatar a importante história da Irmã Lourdes, afirmou que compreende e respeita os processos internos das instituições, neste caso, religiosa. "Porém, nos surpreendeu sobremaneira a forma, a rapidez e, em certa medida a desconsideração com os impactos desta decisão, pois a Irmã Lourdes Dill, por tudo o que foi exposto antes, não a representa tão somente, mas representa um projeto, um movimento social, ou seja, o Movimento da Economia Solidária."

E continua o documento: "Neste sentido, uma decisão desta, deveria ser construída com este movimento social, com seus pares, especialmente no âmbito local. Ao contrário, uma decisão posta assim sobre a mesa, sem diálogo, sem construção coletiva, sem processo, caracteriza, ao contrário do que está sendo dito, falta de reconhecimento do papel, do valor, do tamanho do legado da Irmã Lourdes e deste movimento social, e também de valorização do coletivo que está à sua volta, este coletivo formado por dezenas de pessoas, famílias e instituições, parceiras de décadas."

Segue recordando que "Dom Helder Câmara, Dom Ivo Lorscheiter tiveram papel central no impulsionamento de inúmeras iniciativas que abriram caminhos para o que hoje chamamos de Economia Solidária. De outro lado, nos fortalece também a postura do Papa Francisco, em seu diálogo com os movimentos sociais e a recente convocação da juventude, para pensar e pôr em prática outra economia, a Economia de Francisco, inspirada também na Economia Solidária."

O manifesto encerra solicitando um diálogo com a Congregação das Irmãs Filhas do Amor Divino.

Leia a íntegra do Manifesto.

* Com informações do jornalista Maiquel Rosauro, da Arquidiocese de Santa Maria


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::

SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS

Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.

Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua

Edição: Katia Marko